04 fevereiro, 2021

Pantagruel

    João entrou no quarto e sentiu uma pancada na cabeça, mas ao levar a mão ao local da pancada, não sentiu nada. Estranho, pensou, e não se preocupou mais.
    – Finalmente chegaste.
    Estava um homem sentado na cadeira do quarto. Não era suposto estar ali ninguém, muito menos aquele homem.
    – Tio André? Como estás aqui?
    – Passo muito tempo aqui, este era o meu quarto, sabias?
    – Mas morreste há 20 anos!
    – Ah, sim. Agora sou o que normalmente se chama de fantasma.
    – Mas... Porque te estou a ver?
    – Porque te juntaste a mim. Uma manobra genial da minha parte, devo dizer. Equilibrei um livro no topo da porta para te cair em cima quando entrasses. Funcionou que foi uma maravilha.
    João olhou para trás e viu o seu corpo deitado no chão com um livro ao lado da cabeça.
    – Mataste-me??
    – Acho que não. Pelo menos, ainda não, ainda estás a respirar. É só esperar um bocadinho.
    – Como conseguiste ir buscar um livro? E logo o pantagruel!
    – Precisava de um livro pesado. Nunca reparaste que as coisas nem sempre estão onde as deixaste? Sou eu. Bem, eu e os outros, mas principalmente, eu. E achei que seria uma boa mensagem, se não resultasse. Já tens 25 anos, devias saber cozinhar.
    – Mas porquê?
    – Preciso de companhia. Há outros fantasmas, mas nada substitui a família. Assim, podemos ficar aqui os dois.
    – Ficar aqui? Só podes ficar onde morreste? Pensei que um fantasma poderia andar por onde quisesse.
    – Ah, isso sim. Já andei a passear por quase todo o lado. Acabo sempre por voltar aqui, é tipo a minha casa-mãe. Eu e o teu pai crescemos aqui, sabes, e este era o meu quarto. Passo a maior parte do tempo aqui, na verdade.
    – OK. Espera, a maior parte, tipo quê? Estavas aqui quando trouxe raparigas cá a casa?
    – Raparigas, plural? Não te armes em galã, foi só uma.
    – Então estavas aqui!
    – Normalmente, ia embora para terem privacidade.
    – Normalmente??
    – Para ser sincero, fiquei surpreendido por conseguires trazer cá uma rapariga. Quis só confirmar que era mesmo a sério. Com o teu historial, o mais provável era ser uma colega de estudo.
    – Não tenho historial nenhum!
    – Pudera! Uma pessoa entra aqui e só vê bandas desenhadas de super-heróis e ficção científica, bonecos de jogos de vídeo e de filmes. Andas para aqui a anerdalhar à força toda! Não me espantava que ela fugisse logo.
    – São artigos de colecção. Na verdade, são coisas valiosas e que talvez dêem dinheiro mais para a frente.
    – Vê lá se não te caem os óculos, totó.
    – Pára com isso! Há coleccionadores com autênticas fortunas. Até valem mais que a colecção de selos da avó.
    – De um selo precisas tu.
    Nisto, a porta de casa abre-se e a mãe de João entra. Vê-o deitado, e corre para ele.
    – João? Acorda, filho! – E dá-lhe um estalo.
    No momento do estalo, João desapareceu e voltou logo de seguida.
    – Que raio!?
    – É porque estavas a acordar, a tua versão fantasma desaparece. Hei-de te levar a um hospital, nas urgências parece que estamos numa rave. É bestial.
    Outro estalo, e João volta a piscar. A mãe agarra-o pelos ombros e sacode-o, e João fica intermitente.
    – AAAAH! Isto é horrível!
    – É, não é uma sensação agradável. Mas não te preocupes, mais um bocadinho e ficas definitivamente lá, ou cá. Reza para que a tua mãe não te dê daqueles estalos com a mão puxada bem cá de trás.
    – Rezar ajuda??
    – Isso é uma pergunta interessante, porque...
    E João acordou.
    – Mãe! O tio André está aqui!
    – Que bonito dizeres isso, filho. Sim, sempre que pensarmos nele, ele está connosco, graças a deus. Mas olha, já não tens idade para andares a dormir no chão a meio do dia. Vá lá, fico contente que finalmente queiras aprender a cozinhar.