18:15. João devia estar quase a chegar a casa. Ana sentia o momento como a última vez que o recebia. No fundo, forçou-se a sentir isso. Não podiam continuar assim, algum dia teriam de fechar o livro, e Ana escolheu aquele dia.
Ouviu o toque do elevador a chegar ao andar. Porta abre, porta fecha, chaves a tilintar. O barulho habitual da chave na fechadura precede a entrada de João. Ana sentou-se num canto do sofá, não lhe apetecia esperar por ele à porta.
– Olá – o cumprimento habitual, desligado, de quem não espera resposta.
– Olá. Como foi o teu dia?
– Hm – João encolheu os ombros, como sempre. Pousou a mala, tirou o casaco e sentou-se no outro canto do sofá. – Normal, igual aos outros.
Ficaram virados um para o outro. Olharam-se sem falar. Uns meses antes, aqueles eram dos melhores momentos que tinham. Não era preciso falar, e o entendimento fluía. João parecia apenas entediado. Rodou o corpo para chegar atrás do braço do sofá e agarrar um jornal qualquer, mas a mão não encontrou nada.
– Mudaste o cesto dos jornais de sítio?
– Sim. Estão na tua secretária.
– Porque os tiraste do cesto? – João parecia estranhar mais esta mudança do que a resposta curta.
– Porque o levei para casa do meu irmão.
– Porquê? – O tom da pergunta sugeria que a atitude era absurda.
– Estive em arrumações – respondeu Ana calmamente. – Arrumei o que era meu, e esse cesto veio de minha casa. Gosto muito dele – não era completamente verdade, só o queria de volta porque o tinha trazido, mas João não precisava de saber isso.
Lentamente, os olhos de João começaram a ganhar vida. Via-se que tentava perceber o que estava a ouvir. A resposta era previsível, tal como ver filmes repetidos. A diferença era apenas a duração. Este filme durava três meses em vez de duas horas. Ana viu os olhos dele subir da sua cara para a estante por trás dela. A boca ligeiramente aberta mostrava surpresa, e o ar entrava e saía em maior quantidade. Reparava, pela primeira vez, que duas das prateleiras estavam vazias. Ana não percebia como, já tinha levado os livros para casa do irmão há quase uma semana. “Homens…”
– Tiraste livros? – as palavras saíram com um tremor mal disfarçado.
– Tirei os meus. Tirei os que comprei para estudar, para trabalhar, e os que lia aqui.
Ouviu-o repetir a sua frase num murmúrio. “Arrumei o que era meu…”. João levantou-se do sofá devagar. Passou os olhos pela sala, e o movimento parou nos sítios onde os dois candeeiros deviam estar. Abriu a porta de correr de um dos armários e viu que as taças onde sempre comeram gelados já lá não estavam. Foi para o corredor e espreitou para dentro do escritório a caminho do quarto. Ana ouviu as gavetas da cómoda abrir e fechar, o chiar da porta do armário, e os passos pesados e lentos de um lado para o outro.
Voltou à sala. Tinha os olhos vermelhos e uma mistura de tristeza e incredulidade na cara. Apesar de estarem naquela situação há vários meses, a sensação de se estar finalmente a tornar real parecia tê-lo abalado, como se tivesse sido abalroado por um camião.
– Está tudo vazio… Como… Quando levaste as coisas? – não queria acreditar no que estava a acontecer.
– Fui levando, aos poucos. Como só trabalho de manhã, tive muito tempo para pensar, digerir o que sentia, e planear.
– Mas porque não me disseste nada? – o choque deixou-o imobilizado, de pé na entrada da sala a olhar para os pés dela.
– Deixaste de falar comigo. Para ser sincera, não me pareceu sequer que o quisesses. E sei que tinhas coisas para dizer. Consigo sempre perceber em que estás a pensar só pelos teus olhos, mas não vinha nada cá para fora. Não vinha! Deixaste de falar comigo.
João abriu e fechou a boca algumas vezes, sem fazer nenhum som.
– Não deixei… – murmurou, e parou.
– Não deixaste? – Ana levantou a voz. Não por estar zangada, já tinha passado essa fase, apenas para ter alguma reacção dele. – Achas que perguntar como foi o meu dia ou dizer que viste um filme giro ou que foste almoçar com os teus amigos é falar? Isso é dizer coisas! Nós falávamos dia e noite, sobre tudo! Se me vais dizer que não notas diferença, então este dia já devia ter acontecido há muito tempo.
– Não, claro que notei – finalmente, uma reacção. – Claro que estranhei falarmos menos e nunca durar muito tempo. É só que… Não sei… sinto-te distante.
– Não sentires isso é que seria estranho. Afastaste-me! Empurraste-me para longe de ti. Não falavas comigo, não querias que fosse almoçar contigo, não me davas nada. Quase rezei para ver alguma coisa que mostrasse que me tomavas por garantida. Ao menos, podia ter razão para estar furiosa, para te gritar, para sair porta fora. Mas não, só senti que era indiferente para ti. Aproveitei as tardes aqui sozinha para chorar tudo o que tinha para chorar, e depois arrumar as minhas coisas. E isto também não foi fácil, porque comecei pelas coisas óbvias. Os candeeiros, os livros, o meu computador no escritório. Mas nada, não reagiste, não perguntaste porque a minha secretária estava vazia, nada. Só serviu para perceber a atenção que me davas, que davas à nossa vida.
João continuava parado. A sua expressão triste mostrava alguma resignação, de certeza que estava à espera deste momento. Provavelmente, não queria que acontecesse, tal como Ana, mas aquele ambiente não podia continuar, e Ana tomou as rédeas e decidiu que o assunto ia ficar resolvido naquele dia.
– Desculpa – disse João, em voz baixa. – Desculpa, quando senti que as coisas estavam diferentes, fechei-me. Pensei que a onda podia passar se me baixasse. Não queria chegar a este ponto. Não quero. Sinto por ti o que sempre senti, mas qualquer coisa mudou, não sei explicar. Esta incerteza deixa-me doido. Fico bloqueado e deprimido. Quando pensei que isto pudesse acontecer, fugi do assunto. Eu sei que tem de ser, mas não quero…
Ana levantou-se e abraçou-o. João começou a chorar baixinho no seu ombro e apertou-a com força.
– Eu sei… Mas tem de ser, não podemos continuar assim. Só nos faz sofrer. Se não estamos felizes, temos de procurar o que nos faça felizes. E se para isso, temos de nos separar, é o caminho que temos de fazer.
João apertou-a uma última vez, e afastaram-se devagar. Deram um último beijo na testa um do outro, como tantas vezes tinham feito, e largaram-se.
Ana pousou as chaves no armário da entrada. Abriu a porta, mas olhou para trás antes de sair. A relação deles tinha sido única, não pensava que fosse possível. Ele próprio tinha dito isso no início. Só desejava voltar a sentir isso, e que ele também o sentisse. Uma parte dela sentia-se triste por não ser um com o outro. Mas era impossível.
No elevador, respirou fundo e deixou as lágrimas cair. O ar fresco da noite confortou-a até ao carro, onde descobriu o último livro que tinha tirado de casa esquecido aberto no banco. Uma prenda dele, e por isso, o último a sair. Respirou fundo de novo e, antes de arrancar, fechou o livro.